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Artigo: “Quando o festival serve o mesmo prato e a cultura pede novos sabores”

O Espírito Santo vive uma explosão de festivais gastronômicos que nasceram nos shoppings e logo avançaram para parques, beiras de praia e outros espaços públicos. São tantos, espalhados ao longo do ano, que ajudaram a consolidar um jeito capixaba de reunir gente em torno do chope artesanal, dos cortes defumados e da música ao vivo, espalhando esse modelo por diferentes cantos do estado.

Público durante show em festival. (FOTO: Divulgação)
Só que toda receita, por mais saborosa, corre o risco de saturar se não trouxer novos temperos. Hoje, o que mais se vê nesses palcos são bandas de tributo, com shows pasteurizados, prontos para agradar quem já conhece cada refrão. É um modelo que funciona para o bolso dos organizadores: o repertório familiar atrai gente, impulsiona o consumo e garante o lucro. A música vira o molho que faz o chope escorregar mais fácil — mas é o caixa que celebra primeiro.

Esse tipo de lógica não é novidade no Espírito Santo. Nos anos 1980 e 1990, bandas como Woops e Reza Forte animavam bailes com repertórios que iam do axé ao pop internacional, ajudando a consolidar um mercado profissional de música ao vivo, ainda que quase sempre reproduzindo o sucesso de outros lugares. Como observa o pesquisador Sérgio Amaral, foi assim que muitos músicos garantiram o sustento, mas também ficaram na zona segura do que o público já conhecia. Nada mais confortável do que cantar junto o que não surpreende.

Atualmente, produtores desses festivais contam que contratar bandas autorais é quase um sonho: os cachês costumam ser mais altos porque se baseiam em valores praticados em contratações feitas por entes públicos ou em eventos privados viabilizados via renúncia fiscal — o que garante esse patamar. Já para o circuito 100% privado, com o risco correndo por conta própria, fica difícil bancar. Enquanto isso, bandas que tocam tributos — ou locais que revisitam os seus próprios sucessos — ocupam o calendário com volume de apresentações, fechando o mês com várias datas. E aí a pergunta: o quanto isso ajuda a cultura local a avançar, ou apenas a girar em círculos? Quando a banda é de “deguste”, mas falta tempero novo no repertório, o risco é o prato começar a perder sabor.

E não são só as bandas covers. Muitas daqui, mesmo autorais, acabam presas aos clássicos que construíram ao longo da carreira, quase como Blitz e Roupa Nova, que lotam casas pelo Brasil inteiro apostando em setlists que o público conhece de cor. O novo, quando vem, é exceção.

Enquanto isso, o Espírito Santo ostenta números que comprovam sua relevância cervejeira: mais de 80 fábricas distribuídas em 30 municípios, colocando o estado entre os líderes nacionais em produção artesanal por habitante. Aqui, chope não é passatempo — é identidade. Por isso mesmo, ninguém quer beber algo tirado antes do tempo certo de fermentação, que perde corpo e sabor. O mesmo vale para o palco: por que insistir no “mega industrializado” do entretenimento, se temos tanto a fermentar e oferecer daqui?

Festivais em outros lugares mostram caminhos possíveis. O Coala Festival, em São Paulo, e o Primavera Sound, em Barcelona, misturam nomes consagrados com artistas autorais e novas linguagens, formando plateias curiosas, abertas ao inesperado. O pesquisador Maurício Lopes destaca que apresentações mais compactas e criativas podem abrir espaço para quem faz som próprio. E fica o convite: se o capixaba já se aventura a provar rótulos diferentes no copo e no prato, por que não fazer o mesmo com o que sai das caixas de som?

Talvez esteja aí a oportunidade de o Espírito Santo erguer novos marcos culturais, com formatos que falem do presente e projetem o futuro, permitindo que a própria cultura local se retroalimente com recursos gerados além do apoio governamental. E quem sabe, espalhados por aí, possam surgir muitos pequenos grandes momentos que reforcem a importância do que um dia foi o Dia D, mas apontem também para um novo tempo, feito de outros ciclos, outros sabores e outras canções.

O autor
Luiz Eduardo Neves - jornalista, doutorando em Ciências Sociais e mestre em Comunicação e Territorialidades

Comentários

  1. Excelente reflexão. Equilibrada, realista e construtiva.

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  2. Acredito que falta honestidade ou pesquisa por parte dos contratantes no artigo.
    As bandas cover capixabas conseguem fechar, as vezes, meses de agenda antecipada cobrando um valor muito parecido que bandas autorais capixabas que tem até mais reconhecimento que as covers.
    Se eles dizem que está muito caro contratar bandas autorais, eu acredito que não estão procurando direito ou só estão se interessando pelas bandas já consolidadas num mercado que, como já foi dito, na maioria das vezes são "presas aos clássicos que construíram ao longo da carreira", e as bandas menores não tem essa necessidade de cobrar o mesmo valor de entes públicos.

    Acho que é isso, falta aos contratantes uma certa vontade de conhecer o que está sendo feito e pelo menos tentar contratar algumas de tantas bandas autorais & capixabas que sugiram por aqui.
    Ótimo texto!!

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